Em tempos de pandemia, viaja-se nos braços do amor

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Olá! 

O meu nome é Liliana Costa e podem conhecer um pouco da minha história aqui: Liliana: a grande vitória de continuar a lutar.

Foram levantadas algumas questões por parte daqueles que leram esse testemunho, por quererem atualizações na história e saberem como me encontro atualmente, e só posso agradecer o carinho respondendo assim ...

Encontro-me bem de saúde, apesar de tudo.

E este “tudo” começou por ser uma viagem para França depois de o meu pai receber o diagnóstico de cancro no cólon, pulmão e fígado.

Ele regressou a Portugal em 2014 para estar em casa e continuar os seus tratamentos em Lisboa, de modo a estarmos mais próximos. Formámos uma equipa nesta luta e no verão de 2015 recebemos a fabulosa notícia de que o cancro no pulmão tinha entrado em recessão. Como em França o meu pai tinha sido submetido a uma operação ao cólon, a nossa expectativa era que o cancro do fígado também diminuísse a ponto de se poder operar e recuperar por completo.

Lembro-me de repetir ao meu pai, como lhe tinha dito ao receber a notícia pelo telefone, que este era só mais um obstáculo que teríamos de atravessar e tudo correria bem. Iríamos ultrapassar o problema e tornar-nos ainda mais fortes.

Encontro-me bem de saúde, apesar de tudo.

Infelizmente, em dezembro de 2015, um coágulo provocado pela própria doença impediu a continuação da quimioterapia por via endovenosa, e o meu pai teve de iniciar o tratamento por comprimidos. Não era suficiente, a doença foi ganhando terreno e perdi-o a 30 de novembro de 2016.  

A dor foi, e é, dilacerante. Passei mal e precisei ir do hospital onde ele estava para o Hospital Curry Cabral para ser rapidamente examinada, mas quis voltar para perto do meu pai ainda antes de receber o resultado das minhas análises. Estive até ao último segundo à espera do milagre, mas simplesmente não aconteceu. Perdi mais 5 % de visão, pelo que me restam somente 5 % no olho esquerdo (e zero no direito). 

Quando fez um ano da sua morte, fui hospitalizada devido a uma misteriosa febre alta. Desse episódio, fiquei com uma cicatriz no rim transplantado que nunca mais desapareceu. Sinto-a como uma marca da falta que o meu pai me faz. A saudade nunca me abandona. Todos os dias me lembro do meu pai e desejo que estivesse aqui comigo a compartilhar o momento, seja ele qual for. Mas comprometi-me com ele a viver da melhor forma possível e a ser feliz, então tento cumpri-lo diariamente. Além disso, tenho mais um motivo para viver: o amor.

Comprometi-me com ele a viver da melhor forma possível e a ser feliz.

No verão de 2015, depois de me sentir em pleno com o meu duplo transplante (reno-pancreático) e após a boa notícia das melhoras no estado de saúde do meu pai, resolvi apostar na minha autonomia e inscrevi-me num centro de reabilitação para pessoas que perderam visão (ou nasceram cegas) para que se tornem mais independentes. Tive aulas de mobilidade (usando uma bengala pela primeira vez na vida), de informática (recorrendo a leitores de ecrã, que também não conhecia), de Braille e de várias outras áreas que aumentaram ou me deram novas competências. 

Durante essa formação, alguns técnicos disseram-me inúmeras vezes que partilhava o mesmo carisma, a mesma força de viver, a maneira de ser e de estar com um rapaz que tinha feito a mesma formação no grupo anterior ao meu, pelo que diziam que nos devíamos conhecer.

Eu brincava que me tinha divorciado há um ano e meio e não queria uma nova relação (tinha muito que fazer). Mas lembro-me de estar a ajudar uma colega nuns exercícios dentro da piscina, e da técnica olhar fixamente para mim e me dizer em segredo que devia mesmo conhecer o tal rapaz (que era cego e também tinha sido submetido a um transplante de rim e pâncreas). Sabendo que esse tipo de transplantes só é feito no Hospital de Santo António, no Porto, e no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, perguntei em qual deles tinha sido operado, com o interesse de juntar uma pessoa otimista e com um bom exemplo de história de vida ao Grupo de Transplantados do Hospital Curry Cabral (GTHCC), cujo objetivo principal é apoiar os transplantados desse Hospital como elementos de uma família que passa pelas mesmas dificuldades.

A técnica não me soube responder, mas um dia informou-me que tinham sobrado entradas para um evento que estava a ser promovido pelo INR (um jogo do Benfica no Estádio da Luz) e tinham convidado um ex-utente (e o seu acompanhante) para participar, então queria ver como seria. Mais que isso, brincou que se viéssemos a entender-nos, eu ficaria a dever-lhe um gelado. 

Conhecemo-nos no dia do jogo de futebol, junto à Estátua do Eusébio.

Um outro técnico pediu-me autorização para facultar o meu contacto ao rapaz, que viria de Castelo Branco e podia precisar de alguma coisa para chegar ao nosso ponto de encontro no estádio, e eu autorizei. Mas uns minutos depois, o mesmo técnico deu-me o número dele e pediu-me para ser eu a enviar-lhe uma mensagem, de modo que ele ficasse com o meu número de telemóvel. Foi o que fiz, apresentando-me como utente do centro e disponibilizando-me para ajudar no que precisasse. 

Conhecemo-nos no dia do jogo de futebol, junto à Estátua do Eusébio. O nosso clube ganhou, mas tenho a certeza que ambos ganhámos muito mais. Foi um encontro inexplicável. Tínhamos imenso para dar a conhecer, mas a sensação de nos conhecermos desde sempre era comum. 

Daí em diante, os nossos telemóveis nunca mais pararam, passávamos horas a fio a conversar. Pediu-me namoro no dia 8 de janeiro de 2016, data do aniversário do meu pai, e no dia 20 desse mês fui a Castelo Branco conhecer a sua família. Apresentei-o à minha, e o meu pai (a pessoa mais importante da minha vida) adorou-o. 

Chama-se Pedro Roma, é um homem íntegro, inteligente e divertido, e faz-me sentir tantas emoções fantásticas que não encontro palavras para as descrever. É maravilhoso. Em novembro de 2016 esteve a passar uns dias connosco, em Lisboa, e regressou a Castelo Branco porque o irmão fazia anos e ele tinha equitação, mas nessa madrugada fui obrigada a levar o meu pai para o hospital pela derradeira vez. E o Roma voltou para Lisboa para estar comigo, e disse ao meu pai que nunca mais me deixaria sozinha. E não deixou. Desde então, nunca mais nos separámos.

Nessa decisão de vivermos juntos, o Roma informou-me que estava inscrito na escola de cães-guia (a única do país) para receber um cão-guia, numa lista que é enorme porque são muitas pessoas a precisar e somente aquela escola a trabalhar na área, e quis saber se eu estava de acordo em receber um cão. Eu só perguntei se teríamos de o devolver em algum momento (porque tinha pouca informação a respeito do assunto), e ele disse-me que essa também tinha sido a sua primeira questão antes da inscrição. Mas não, ele poderia ficar connosco para sempre (desde que bem tratado, obviamente). Então, em 2018, fomos à primeira entrevista no Dia do Pai, e em julho ficámos hospedados na escola (em Mortágua) para conhecer e fazer formação com o Madrid (o cão-guia que se tornou os nossos olhos na rua, e que é um super companheiro de aventuras, dócil, vivaço e extremamente bem-educado). Foi um novo elemento que chegou à nossa família e que nos faz muito felizes, além de nos ter tornado ainda mais responsáveis. 

Madrid, o cão-guia que se tornou os nossos olhos na rua.

Para responder a questões do que fazem dois cegos, posso dizer que já viajámos bastante pelo país, fomos à Madeira, Salamanca, Londres, e tínhamos viagens compradas para Dublin que cancelámos. Já fizemos um cruzeiro, canoagem, andámos de bicicleta, de comboio e de avioneta. Já montámos a cavalo, cada qual no seu, com as mãos dadas. Já conduzimos (sim, conduzimos), num carro de uma escola de condução, com o instrutor (temeroso) ao lado e o outro no banco de trás do carro, numa pista incrível. Também fizeram rally connosco dentro de um Subaru (passo a publicidade). Adiámos o salto de paraquedas e o balonismo, mas não por falta de coragem (apenas devido à situação epidemiológica que o mundo atravessa). Vivemos sozinhos, fazemos o que qualquer outra pessoa precisa fazer em casa. Gostamos de ler, ouvir música, acompanhar séries e alguns programas de rádio. Somos jovens normais, um casal apaixonado que contorna as próprias limitações.

Assumimos lugares, eu na Direção de Delegação da Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), e ele como Presidente da Mesa da Assembleia Geral de Delegação.

Em março de 2020, a notícia da propagação de um vírus desconhecido e mortal que surgiu na China fez-nos tomar a decisão de nos confinarmos voluntariamente.

Foi uma decisão difícil, mas que se tem mantido até hoje (um ano depois). No início, até julgámos que poderia ser exagerada da nossa parte, mas estipulámos que entraríamos apenas os dois em casa, e só saímos para levar o Madrid à rua (e o lixo) utilizando máscara.

Mantivemos a rotina de acordar cedo para tomarmos o pequeno-almoço e a medicação, além de tratar do Madrid, e os horários das refeições - ainda que com mais tempo para cozinhar. Com tanta sugestão de receitas na internet, tem dado para experimentar muitas coisas novas. Já fazíamos compras online, pelo que, nesse campo, a COVID-19 não afetou a nossa vida.

Afetou, e muito, no modo como o Roma presidiu a assembleia da ACAPO, pela primeira vez via internet, e a mim como Presidente da Delegação.

Tenho a perfeita noção de que a distância física me obrigou a dedicar muito mais tempo a esse trabalho do que teria dedicado numa época normal.

O ano 2020 foi tão atípico que recebia frequentemente novas diretrizes para o funcionamento e juntamente com a minha equipa de trabalho sentíamo-nos numa espécie de corrida contra o tempo para não falharmos em nada nem a ninguém.

Perdi a conta ao número de emails que li da Câmara Municipal, Junta de Freguesia e tantas outras associações ou organizações, devido ao tema COVID-19.

Foi um ano muito difícil, mas no final muito gratificante pelos resultados obtidos e por nos sentirmos no caminho certo para continuar o bom trabalho.

A propagação de um vírus (...) fez-nos tomar a decisão de nos confinarmos voluntariamente.

 Aderindo ao desafio lançado pela organização dos Jogos Olímpicos dos Transplantados, que nos foi dado a conhecer pelo GTHCC, eu e o Roma começámos a fazer exercício físico diário com o objetivo de fazer o maior número de passos possível dentro de casa, tentámos acompanhar vídeos que estão disponíveis na internet e rimos muito, porque a visão é pouca para percebermos devidamente os exercícios. Cumprimos as nossas metas e temos mantido essa rotina, não só pelo nosso bem-estar físico (as dores de costas diminuíram consideravelmente e melhorámos a postura), como mental (sentimo-nos mais bem-dispostos e animados).

Sentimos muita falta das nossas caminhadas ao ar livre e de viajar.

Fazemos muitas viagens dentro do país, nomeadamente entre Castelo Branco e Lisboa, e tínhamos comprado uma viagem para Dublin e feito o plano de ir a Madrid no verão de 2020, mas que cancelámos por causa da pandemia.

Também temos como tradição fazer uns dias de praia e a reação do nosso cão-guia ao ver as toalhas, fez-me perceber que ele também lamenta o facto de termos quebrado a tradição pela primeira vez - ele adora correr pela areia, nos horários em que vamos e não encontramos ninguém na praia.

Focamos no facto de nos mantermos saudáveis, mesmo percebendo que é como um cerco a apertar-se. Primeiro só ouvíamos falar de casos que aconteciam longe de nós, depois nas nossas cidades, entretanto o vírus atinge (coloca em risco e tira a vida) também a familiares e amigos próximos. Impede-nos de nos despedirmos de um avô.

Agradecemos pelo facto de nos darmos tão bem, de gostarmos de estar juntos e de, independentemente das condicionantes, nos fazermos felizes.

Faz-nos decidir não engravidar, para evitar as tantas saídas que seriam necessárias para acompanhar a gestação, e pela insegurança do que será a vida de uma criança nascida numa época como esta.

Mantemo-nos firmes na decisão de nos protegermos ao máximo, passámos um Natal romântico e fizemos a passagem de ano a dois, desejando mais que nunca saúde para todos.

Acreditamos naqueles alertas de que o confinamento nos torna sedentários, mas não pode ser desculpa para não fazermos exercícios, então experimentámos dançar (porque a música alegra) e voltámos a abrir a mala de halteres, que estava encostada por falta de tempo e vontade de tonificar os músculos.

Agradecemos pelo facto de nos darmos tão bem, de gostarmos de estar juntos e de, independentemente das condicionantes, nos fazermos felizes.


Beijos com o meu maior sorriso,

Liliana Costa

A Liliana, o Pedro e o Madrid.

A Liliana, o Pedro e o Madrid.