Tropeçar, mas não cair
Tropeçar, mas não cair
Marina Ferraz e a confiança no tão esperado telefonema
Confesso que algumas vezes me senti tentada a contar a história da minha experiência como cidadã e jovem com doença renal crónica. Reprimi sempre essa vontade, porque entendo que só o poderei fazer com a clareza e objetividade necessárias depois do ciclo estar completo, ou melhor, após o transplante, pelo qual aguardo, serenamente. Contudo, aceitei o desafio de escrever sobre o percurso que fiz até ao momento com a doença renal crónica, com a promessa de um próximo testemunho, depois do transplante.
Aprendizagem e ilusão
A doença caiu com estrondo sobre mim e a minha família em outubro de 2010, mês do meu vigésimo quarto aniversário. Desde então, todas as rotinas familiares foram alteradas e adaptadas a uma nova realidade, com muitas lágrimas recalcadas.
Com apenas 30% da função renal ativa, passei por uma primeira fase de consultas de rotina que se prolongou até novembro de 2015, data em que, com o agudizar do quadro clínico, comecei a fazer diálise peritoneal manual. Tinha acabado de celebrar 29 anos.
A técnica de diálise manual era feita três vezes por dia, de manhã, de tarde e à noite, em sessões de 30 minutos. Foi um período muito limitativo em termos laborais e familiares, mas que consegui ultrapassar com alguma leveza psicológica, porque já vislumbrava no horizonte a possibilidade de um transplante.
Desilusão e frustração
De entre as duas possibilidades de dadores vivos, pai e mãe, acabou por ser escolhida a minha mãe, por existir uma compatibilidade total ao nível dos tecidos e do sangue. O transplante foi agendado para os primeiros dias do mês de julho de 2016. Nos dias que antecederam a intervenção, a esperança e a promessa de sucesso eram elevadas.
Mas se o mês de julho de 2016 devia ter ficado registado na minha história pessoal como um mês de júbilo, ao invés ficou registado como o mês mais triste de toda a minha existência.
Depois de tantos e tantos casos de sucesso anteriores, a mim e à minha mãe teve que se aplicar, logo ali, a Lei de Murphy que diz: “Qualquer coisa que possa ocorrer mal, ocorrerá mal, no pior momento possível.” Um problema no pós-operatório com um trombo na perna esquerda deixaram-me em coma durante quatro dias, bem como com outros problemas associados que reservo para mim própria. Ainda em coma, comecei a fazer hemodiálise que durou até agosto do mesmo ano.
Deste episódio retirei uma máxima de vida: nunca devemos aceitar fazer um transplante inter vivos, sem que os intervenientes (dador e recetor) estejam bem conscientes dos riscos associados.
O renascer da esperança
Aproximadamente um mês após a intervenção, em meados de agosto de 2016, comecei a fazer diálise peritoneal automática. Adaptei-me facilmente à minha máquina portátil cicladora que, carinhosamente, designo por “migas”, e que está ligada a mim no período noturno, durante oito horas. Este equipamento, apesar de me ter obrigado a fazer algumas remodelações na residência para ganhar espaço para o armazenamento do tratamento e de, obviamente, limitar a minha vida noturna, facilitou-me o regresso à vida familiar, profissional e civil em toda a plenitude.
Visita guiada ao Estádio da Luz, a 19 de abril de 2017.
As minhas paixões
A doença renal crónica interfere com todas as áreas da nossa vida, altera o nosso corpo e afeta a parte psicológica. As minhas paixões têm um papel muito importante, na medida em que me ajudam a conseguir conviver com esta doença e com todas as transformações que têm ocorrido em mim. São uma fonte de alegria e de energia positiva. As minhas paixões são: o Benfica (clube pelo qual tenho uma grande predileção), a música que está sempre presente em todos os momentos, a literatura, séries e todos os momentos que passo em família e com os meus afilhados, que são duas grandes paixões.
Sem baixar os braços
Não posso terminar este testemunho sem acrescentar que hoje, com 31 anos de idade, levo uma vida o mais normal e feliz possível, muito pelo contributo de todos os profissionais que me têm ajudado a ultrapassar cada etapa desta odisseia, mas, e muito especialmente, pelo apoio permanente da minha família, do meu marido, do meu pai, das minhas manas, dos meus avós, dos meus tios, dos meus primos e dos meus amigos que se revelaram nesta fase, e que foi a pior da minha vida. Um agradecimento muito especial ao apoio incondicional da minha mãe e da enfermeira Nádia que estão presentes e disponíveis em cada momento da minha doença.
Continuo plenamente apaixonada pela vida... e à espera que o telemóvel toque.
Até a uma próxima, com o transplante.
Marina Ferraz
Imagens: Fotografias de Marina Ferraz gentilmente cedidas pela própria