Custódio Quibina: “Tenho uma relação de amor/ódio com a máquina da hemodiálise”

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Por volta dos 9-10 anos de idade, a minha vida sofreu uma reviravolta que mudaria a minha vida para sempre. Vim de propósito da Guiné-Bissau para Portugal, devido ao facto de o meu país não dispor dos meios necessários para fazer o diagnóstico da minha doença nem do tratamento que necessitava. As despesas foram divididas entre o meu pai e o estado da Guiné-Bissau.

Um representante da embaixada da Guiné-Bissau foi-me buscar ao aeroporto e levou-me para o Hospital de São Francisco Xavier e de lá passei para o Hospital de Santa Maria que passou a ser a minha casa. Entretanto, ao fim de algum tempo, a Assistente Social do Hospital de Santa Maria tratou de tudo para que eu pudesse ficar na Casa do Gaiato, em Lisboa.

Tudo isto fez com que eu tivesse uma infância muito dura, porque vim para Portugal sozinho e não tinha cá ninguém.

Compreendo a decisão dos meus pais ao enviarem-me para Portugal, eles queriam salvar-me e o meu país não tinha condições para me tratar nem para fazer o diagnóstico da doença renal crónica. Tudo isto fez com que eu tivesse uma infância muito dura, porque vim para Portugal sozinho e não tinha cá ninguém. Tive que aprender a falar português, uma vez que a única língua que falava era o crioulo. As educadoras do Hospital de Santa Maria ensinaram-me muitas coisas, mas faltou-me o carinho e o aconchego que só se conseguem com uma família. Quando era criança foi-me difícil aceitar esta realidade, mas hoje compreendo que o esforço e o sacrifício valeram a pena, na medida em que tive a oportunidade de estudar, de trabalhar, de continuar a viver e de conhecer muitas pessoas.

Durante cerca de dois, três anos consegui ter uma vida normal e a doença controlada, mas os médicos iam-me avisando que podia entrar em hemodiálise. Quando chega a altura de entrar em hemodiálise, os acessos foram e têm sido um pesadelo para mim. O primeiro acesso não correu bem e tive de fazer um segundo. Nesta altura, e antes de começar com a hemodiálise, viajo até à Guiné-Bissau para matar as saudades da família durante 15 dias, mas, infelizmente, não me reencontrei com a minha mãe que, entretanto, tinha falecido.

Tenho uma relação de amor/ódio com a máquina da hemodiálise.

Em 2005, estava eu a dormir, ligaram do Hospital de Coimbra para me comunicarem que havia um rim compatível e perguntaram-me se eu queria avançar com o transplante. Eu respondi que sim e fui logo para o Hospital com o Padre Acílio. A cirurgia correu bem e estavam a aguardar que o rim começasse a trabalhar. Ao fim de duas, três semanas o rim não dava sinais de querer trabalhar. Tive internado durante três meses, nunca parei com a hemodiálise e, infelizmente, houve rejeição do rim e voltei para a Casa do Gaiato, mais desiludido que nunca.

Faço hemodiálise há cerca de 12 anos. Enquanto os meus amigos vão para o ginásio, eu vou para a hemodiálise. Apesar de ser um tratamento muito agressivo, é necessário conseguirmos adaptar-nos e viver com a hemodiálise. Temos de contrariar aquela sensação de nos querermos entregar à doença e à máquina.

Tenho uma relação de amor/ódio com a máquina da hemodiálise. Perco 12 horas por semana agarrado a uma máquina que me dá vida, que me salva, que me mantém vivo e tenho de querer continuar a viver, não posso entregar o corpo à máquina, mas é algo que sinto que restringe as minhas relações profissionais e pessoais.

Concluí o curso de Técnico de Informática, do qual me orgulho muito, porque já estava a fazer hemodiálise quando entrei para o curso. Tenho pena de, até ao momento, não ter conseguido arranjar trabalho nesta área. Atualmente, faço parte da equipa do Serviço de Imagiologia do Hospital CUF Descobertas como Assistente Operacional e à qual agradeço a forma como me acolheram e o facto de ajustarem o meu horário de trabalho com o da hemodiálise.

Faço hemodiálise há cerca de 12 anos.

Eu não me considero doente. Todos temos problemas de diversa natureza, mas sinto rejeição por parte dos outros que me rodeiam, mais especificamente no que diz respeito aos relacionamentos.

Gostava de ser de novo transplantado, mas com sucesso, porque quero construir a minha vida e ter a minha própria família. O meu objetivo, aquilo com que sonho é de ter a minha casa, os meus filhos e a minha mulher. Gostava de progredir na vida, mas sinto que enquanto fizer hemodiálise não vou conseguir realizar os meus sonhos.

Queria poder ter uma companheira que me aceitasse, que aceitasse a minha doença (que faz parte de quem sou), que me desse motivos para continuar a lutar, mas sempre que parece que estou prestes a estar num relacionamento, essa possibilidade fecha-se, porque não é qualquer pessoa que consegue estar ao nosso lado.

Por outro lado, com o transplante, deixaria de me sentir triste e desanimado. Já não tinha de me sentar mais naquela cadeira, já não tinha de ser picado, já não tinha de ficar ligado àquela máquina. É inevitável não começarmos a sonhar com uma outra vida, a sentirmo-nos outra pessoa, a sentirmos que a nossa vida adquire uma outra liberdade.

Sinto muito a falta do meu companheiro Abílio Pequeno, cuja história também consta do site Pelo Rim. Foi meu companheiro na Casa do Gaiato e fazia hemodiálise no mesmo dia, à mesma hora, na mesma sala e na cadeira de frente para a minha. Fazia caminhadas e corridas, mas desde que o Abílio faleceu que não tenho sentido muita vontade.

Custódio Quibina 2
Custódio Quibina 2

Chamo-me Custódio Quibina, tenho 29 anos, moro na Casa do Gaiato em Lisboa há 13 anos, sou doente renal crónico desde os nove anos de idade, faço hemodiálise há cerca de 12 anos, fiz um transplante sem sucesso há nove anos e esta é a minha história.

 

 

"Tenho um papel importante, nesta longa estrada ... Sei que vou cair muitas vezes, mas tenho consciência de uma morada."

Pensamento de Abílio Pequeno

 

 

Imagens: Fotografias de Custódio Quibina gentilmente cedidas pelo próprio