A história de um transplante renal (parte 2)

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A história de um transplante renal - início da diálise e o processo de transplantação

 

(Esta é a segunda parte do testemunho "A história de um transplante renal". Relembre a primeira parte.)

 

O início da diálise

Comecei no dia dos namorados de 2012. A primeira sessão correu muito mal. Tiveram de me picar várias vezes, mas sem sucesso. Adiou-se o início da diálise uma semana e à segunda foi de vez. As primeiras sessões não são completas. Primeiro duas horas, depois três e, por fim, quatro horas. No meu caso, fazia hemodiálise às segundas, quartas e sextas-feiras das 18h às 22h. Nesta fase, inevitavelmente, tive de dizer ao resto dos meus colegas de emprego mais próximos que três vezes por semana ia sair mais cedo.

A diálise é uma prisão.

Uma profunda tristeza apoderava-se de mim. Nas primeiras sessões, a Margarete ficava à minha espera na sala de espera da clínica de diálise.

A diálise é uma prisão, na medida em que estamos presos a uma cadeira e a uma máquina. Geograficamente, estamos limitados pelo facto de três vezes por semana, termos de fazer o tratamento e, se não tivermos escapes, ficamos presos à doença.

A minha alimentação mudou por completo, mas o que mais me custou a alterar nos meus hábitos foi a ingestão de líquidos. O corpo de um doente renal em diálise não tem como expelir os líquidos (a urina é muito pouca ou inexistente), é a máquina que entre outras coisas nos elimina os líquidos e controla o peso. Dava em doido pelo facto de não puder beber líquidos livremente, a determinada altura 0,5l mais a quantidade correspondente à urina que fizesse era o meu máximo diário. Parece muito? Não … neste limite estão incluídos todos os líquidos que ingerimos na comida. E o resto, os ‘verdadeiros’ líquidos, todos somados rapidamente esgotam o limite. Dava por mim a medir tudo o que bebia, tinha uma noção aproximada do volume dos recipientes que usava no dia a dia, incluindo os copinhos de plástico da máquina de café. Para puder ter o prazer de beber água, aguentava ao máximo a sede ou bebia pequenas quantidade com golos muito pequenos para fazer render mais a água do copo (geralmente era o tal copo da máquina de café). No verão ainda era pior.

Lutava com a sede e com o peso.

A maior ou menor quantidade de água tinha um impacto direto no meu peso. A cada dois dias ganhava cerca de 2kg que eram ‘eliminados’ pela diálise. Lutava com a sede e com o peso.

Do emprego ia para casa, preparava o lanche e ia para a clínica. O meu turno de diálise era das 18h às 22h, mas entre ser ligado e desligado à máquina, nunca terminava antes das 23h. Regressava a casa sempre muito cansado.

Apesar do meu acesso vascular ter demorado a estabilizar e de ter sido necessário fazer uma segunda cirurgia, não tive muitas complicações nem mesmo durante as sessões de diálise.

Durante as sessões não falava muito com os restantes colegas de turno, estava de volta das minhas coisas, trabalhava no computador, lia, via televisão e falava com a Margarete pelo Skype.

Em casa e no emprego a ida à diálise era conhecida como “ir ao SPA”. Convenhamos, efetivamente era um tratamento de beleza e limpeza ao meu sangue.

Nunca quis ser diferente ou que a minha limitação me afetasse no dia a dia, mas olhando para trás, e apesar de na altura não o querer reconhecer, vejo que houve momentos que só com muito esforço me aguentava. Tinha momentos de cansaço extremo, mesmo sem ser em dia de diálise, experienciava algumas tonturas durante o dia e havia fins de semana em que dormia imenso. Devido ao cansaço extremo, houve pequenos gestos do dia a dia que se tornaram insuportáveis para mim. Não sei como consegui ir trabalhar.

Em casa e no emprego a ida à diálise era conhecida como “ir ao SPA”.

Na clínica todos os profissionais (médicos, enfermeiros e assistentes operacionais) estavam atentos aos doentes. Havia um ambiente de boa disposição, mas profissional. A doença e a diálise não são nada divertidas, mas podemos fazer por tornar as coisas mais descontraídas.

 

Pré-Transplante

Ainda antes de iniciar a diálise, fui inscrito na lista de espera para o transplante renal. Desde cedo, a Margarete falou em explorarmos a hipótese de transplante de dador vivo. Inicialmente, foi algo que não aceitei. O risco imediato e futuro a que ela ficava sujeita e o facto de não querer fazê-la passar por isso, sempre me deixaram com muito receio e um enorme peso na alma.

O risco imediato e futuro a que ela ficava sujeita (...) sempre me deixaram com muito receio e um enorme peso na alma.

Iniciámos o processo de transplante. Algo que é necessariamente longo, não só para garantir que as condições são as mais indicadas e o risco para o dador é mínimo como também para garantir que o dador e o recetor estão certos que este é o passo certo e que todas as consequências são conhecidas e avaliadas. Antecipando o transplante que se configurava no horizonte e com o objetivo de minimizar eventuais complicações, a equipa médica decidiu fazer uma cirurgia para me retirar a vesícula, devido a alterações que se tinham verificado na mesma. Depois de muitos exames, análises, consultas e o parecer da comissão de ética, recebemos luz verde para o transplante.

Devo dizer que, apesar do processo ter sido longo e desgastante, é absolutamente necessário para garantir que ambas as partes estão certas de que aquele é o caminho e para aumentar as probabilidades de sucesso do transplante.

 

Transplante

Ao final do dia em que soubemos a data do transplante renal ligámos aos nossos pais. Obviamente a notícia foi recebida com enorme surpresa, com receio e sem grande tempo para digerir. Quando dei a notícia à minha mãe ela começou instantaneamente a chorar e a minha sogra ficou sem saber o que dizer, mas receosa por a dadora ser a filha. No fundo, acho que por parte da nossa família, havia a esperança que aparecesse um dador que não a Margarete.

Trabalhei até à véspera do transplante e lembro-me que, na altura, pensei que no dia seguinte estaríamos internados.

No dia seguinte, no meu emprego, dei a novidade à minha chefe, que já sabia que este podia ser um cenário real, meio a correr no corredor. Recordo a Bárbara e a Edite que me deram um abraço conjunto muito sentido quando lhes dei a notícia. Fizemos um almoço de ‘até breve’ no qual a Zélia, que estava de licença de maternidade, fez questão de estar presente.

Trabalhei até à véspera do transplante e lembro-me que, na altura, pensei que no dia seguinte estaríamos internados.

É agora!

No dia da cirurgia, as borboletas na barriga levantaram voo. A cirurgia da Margarete começou primeiro e, como tudo estava a correr bem, foram-me buscar logo de seguida. Quando disseram o meu nome, pensei: “É agora!”. Recordo-me do percurso para o bloco, de perguntar se estava tudo a correr bem com a Margarete, de passar pela porta para onde apontaram e me disseram que a Margarete estava ali. Estiquei o pescoço para ver se conseguia ver alguma coisa e, depois, chegou a minha vez.

 

(Conheça a última parte deste testemunho.)

 

 

Paulo Almeida - Cofundador do site Pelo Rim

 

 

Imagem: Red Cross de Adam Fagen sob licença CC BY-NC-SA 2.0