Entre a luz e a sombra
Ser doente renal em tempos de pandemia
Em março, o mundo parou! Entrei num filme que parece não ter fim. Estamos em novembro de 2020 e vivem-se tempos diferentes, tempos esses que seriam para melhorar o mundo, para a Natureza “respirar” com a nossa paragem e para criarmos valores de respeito pelo outro, responsabilidade por tudo o que nos rodeia... só que não. O ser humano continuou igual ou até, às vezes, penso que piorou. Quero acreditar que não!
A 16 de março, as escolas fecharam e eu passei a trabalhar em casa. Na semana que se antecedeu, não se falava de outra coisa se não de um vírus vindo da China e que era potencialmente perigoso e mortal. Ao mesmo tempo que ficava ansiosa e preocupada, sem saber muito bem o que pensar ou acreditar, exteriorizando que era um “bicho” igual aos outros que tinha aparecido e que toda a gente estava a exagerar em tudo o que se estava a passar, confesso que, nessa semana, fiquei com medo, medo esse que depressa passou ao vir trabalhar para casa.
No início da quarentena sentia-me bem, segura e com tudo controlado. Com o passar do tempo, tive de me adaptar a uma realidade diferente: aulas online. De repente, tudo era diferente, apenas comunicava com os alunos por e-mailou videochamadas. Não havia os abraços, os cheiros, as corridas e a agitação própria das crianças, nem a minha ajuda próxima de que tanto precisam nesta idade, e eu também.
Foi difícil, muito difícil para todos nós (docentes), para os pais, para toda a comunidade educativa e, principalmente, para as crianças que se viam fechadas no seu mundo, sem estar em contacto com os de todos os dias. Mas, mais uma vez, provamos que somos uma profissão que tudo consegue, a que tudo se adapta, desde que haja boa vontade, coragem, positividade e recetividade à mudança.
Enquanto isso, as consultas, as análises e os exames pararam, embora tenha tido sempre contacto com a unidade de Diálise Peritoneal. Nunca me senti abandonada, nem que, de repente, se tinham esquecido de mim. Pelo contrário, no meio de uma guerra que estava a ser vivida intensamente nos hospitais de todo o Mundo, por todos os profissionais de saúde, sinto que continuaram a preocupar-se comigo. Só tenho a agradecer a estes heróis que na linha da frente tudo fizeram.
No início da quarentena, sentia um misto de emoções. Por um lado, medo e uma angústia enorme pelo que poderia vir a acontecer e por todos os que estariam a passar por situações horríveis, ou por estarem a lutar para combater a doença, ou por aqueles que estariam a trabalhar para que todos tivessem acesso aos devidos cuidados. Por outro lado, sentia-me contente pelo facto da maldita COVID-19 ainda não ter entrado na minha vida, nem de ter conhecimento de nenhum dos meus.
Por ser doente renal tinha, e tenho, muitas dúvidas e questões, mas sei que estou a fazer tudo o que está ao meu alcance para me proteger e proteger todos os que me rodeiam.
As indicações sobre o nosso recolhimento vinham de todos os lados, mas as dúvidas pairavam. Até quando? Até quando iria estar em casa sem conseguir estar com o resto da minha família, os meus amigos e a minha escola? Confesso que já sentia saudades da escola logo na primeira semana.
Aqui em casa, mantivemos uma rotina semanal, pois penso ter sido o melhor para a nossa mente sã. De manhã, era o teletrabalho e as miúdas na "escola" e, de tarde, o ritual mantinha-se: trabalho, arrumar coisas pendentes em casa e, por vezes, um passeio na mata. Ao fim do dia, o treino fazia-se em família, tornando-se assim num hábito diário de casa, que mais prazer me deu, pelo facto de estarmos todos juntos com o mesmo objetivo.
Ao longo do tempo, as rotinas começaram a entrar na nossa vida com mais normalidade. O acordar, vestir uma roupa mais desportiva (não uma roupa de "andar por casa") porque vamos ficar em casa, a maquilhagem que não colocava porque não ia para a escola, os almoços e jantares que tinha de preparar todos os dias e a toda a hora, e até o pão que fiz (como toda a gente nesse momento). Por uma questão de precaução, e como sou uma doente de risco, pelo facto de estar a fazer diálise, as compras eram sempre feitas pelo homem da casa.
Ao longo do dia, a forma de matar saudades dos amigos e da família era através do telemóvel e de videochamada. Assim, conseguíamos estar próximos, mesmo estando longe.
O sentimento continua o mesmo: a incerteza do futuro, a confusão do que é certo ou errado, as várias teorias que pairam na minha cabeça e o medo. O medo de algo que me possa vir bater à porta e, apesar de saber que a minha força é grande, entrar sem pedir licença e roubar. Roubar a alegria, a esperança e a fé que me dá ânimo para seguir em frente.
Sei que há muita gente a passar mal com esta pandemia, seja pela própria doença, por ter visto o seu rendimento mensal reduzido ou mesmo nulo, ou por estar longe dos seus.
Posso dizer que sou uma sortuda porque estive em casa e não me senti nada enclausurada. Adoro e sempre adorei estar em casa, mesmo com horários a cumprir, e chegar ao fim do mês e ter o meu ordenado ainda completo.
Na altura da quarentena sentia-me bem e queria que o tempo andasse devagar, apesar de me ter custado muito estar sem os meus pais, o meu irmão, a minha sobrinha e os meus amigos mais chegados.
Também sinto que estava a necessitar deste tempo em que estive em casa para me virar um pouco mais para dentro e refletir. Refletir sobre o que realmente necessito, qual é o meu caminho e principalmente com quem quero caminhar. Essa tem sido a minha grande inspiração: com quem posso caminhar e de quem não preciso ter ao meu lado, ou não me faz falta, ou até mesmo quem não me traz qualquer aprendizagem, seja ela negativa ou positiva, apesar de achar que ninguém passa na nossa vida por acaso e todos têm uma lição a oferecer, mesmo que essa lição cause dor.
Esta paragem na nossa vida veio fazer isso mesmo: PaRaR! Sem dúvida, que este momento histórico na nossa vida fez-nos refletir no que é mais importante. Veio mostrar a importância que pequenas coisas fazem na nossa vida. A aproximação à nossa família também estava presente, pois, no dia a dia normalíssimo, nem sempre temos tempo para estar.
Só fui visitar os meus pais passados 40 dias. Esses, sim, são os que mais sofrem. Esta pandemia veio mostrar ao mundo que os mais sensíveis são os que não conseguem resistir, seja pela doença ou pela solidão.
Toda a gente me dizia para não sair de casa, mas não consegui. Desde o primeiro dia de quarentena, que ia sempre fazer um passeio aqui ao lado de casa. Mas também tenho o privilégio de ter uma mata muito perto com uma vista fabulosa da nossa praia. Para mim, a saúde mental está em primeiro lugar e uma coisa leva à outra.
Depois de mais de 40 dias protegida em casa, saindo apenas para passeios na natureza, decidi que tinha de ser, começar a sair, começar a entrar no mundo real, até porque achava que tinha de ir testando as minhas defesas e criando eu própria a imunidade. Não tive medo e, assim que as lojas começaram a abrir, arrisquei. Assim que a esteticista abriu, fui logo arranjar as unhas e fazer a depilação, depois de tanto tempo sem tratar de mim. Comecei também a ir ao supermercado comprar pão apenas. Claro que todas estas saídas não eram feitas em vão e tinha sempre os cuidados previstos: andar de máscara, ter o cuidado para não tocar com as mãos na cara, tirar os sapatos antes de entrar em casa e lavar as mãos assim que chego.
É certo que não saí muito mais, até porque o trabalho em casa era muito, tanto o que tinha para fazer para a escola todos os dias e as aulas online, como o próprio trabalho de casa: cozinhar, arrumar, limpar...
O que mais me está a preocupar neste momento é o transplante... São seis anos de espera! É muito tempo para esperar uma oportunidade de viver. É muito tempo, mesmo. Apesar de não ter dados concretos, claro que, com esta história da COVID-19, os transplantes fazem-se em menor número.
Infelizmente, como o medo se instalou devido a esta doença do momento, esquecem-se todas as outras que são tão ou mais graves. Agora, já não se morre de gripe, de pneumonia, cancro, acidente vascular cerebral, morre-se de COVID-19...
Não tenho opinião científica acerca disto tudo, mas este histerismo global gerado à volta desta doença, está a trazer graves problemas ao nível emocional, social e económico para o mundo inteiro. Temos de nos manter fortes e íntegros, não andando em ondas que nem sabemos a sua veracidade. Se eu não tenho medo de contrair este vírus?! Claro que tenho, da mesma forma que tenho medo da gripe sazonal ou de uma pneumonia. Tenho medo de todas as doenças que não me deixem viver a minha vida. Mas não penso nisso, nem fico consumida com pensamentos negativos, e deixo-me ir.
No meio disto tudo, e ao longo deste tempo todo chego a uma conclusão que não é novidade para mim: as áreas da Saúde e da Educação são as mais importantes numa sociedade no meio de uma crise, e não só, e, infelizmente, são as mais maltratadas. Todos fizeram tudo o que podiam sem se queixarem e continuam a ser tão desvalorizados, principalmente, pelos nossos senhores do governo. Não se pretende nada em troca, apensa reconhecimento e valorização.
Neste momento, estou a trabalhar na escola e entristece-me o que estamos a fazer às nossas crianças: todos voltámos, mas os abraços e a proximidade não. Só o cumpro porque sou profissional, acima de tudo, e tenho de seguir as regras com ponderação e a mente sã. Mas não aceito nada disto, não aceito que não possa abraçar as crianças que me dizem que têm saudades minhas; não aceito o ter de negar aos alunos brincar com colegas de outros anos de escolaridade, todos juntos e ao mesmo tempo; não aceito comunicar de máscara porque, para mim, a comunicação é bem conseguida também com a expressão facial; não aceito o medo que se instalou em toda a gente e tudo é feito com calculismo e não com o coração. Eu não sei ser assim, apesar de o ter de ser.
Que tudo corra o melhor possível, que consigamos manter a sobriedade e a inteligência suficiente para não cair em situações menos agradáveis. O maior sentimento vai para o momento que, nunca jamais em tempo algum, pensei que passaríamos... eu e o Mundo inteiro.
Sílvia Leite
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