COVID-19: o Adamastor no século XXI
Sempre gostei muito de História. Como portuguesa, sinto-me particularmente orgulhosa pela Época dos Descobrimentos. E, ao mesmo tempo, acreditando que tão grandes glórias não seriam possíveis no dia de hoje, porque num Mundo tão "avançado" não há lugar para monstros e heróis, histórias de bravos e valentes, de líderes inspiradores contra medos profundos.
Até que, em pleno século XXI, surge um vírus. Não é o "Mostrengo" gigante que está ao fim do mar, mas uma partícula minúscula que fez parar o Mundo todo e acordar os nossos maiores medos: a solidão, a clausura, a doença, a morte, a perda...
Aos profissionais de saúde foi pedido que avançassem mar adentro sem saber que tormentas esperar. Aos decisores foi pedida a lucidez, o discernimento, o visionarismo do Infante. E ao povo a abnegação da espera que se conquistasse este Novo Mundo.
Não sei onde ficaram parte destes heróis, se em nós corre nas veias o mesmo sangue.
Sou Médica. Estou cansada. Porque também me assusta este Mostrengo. Porque tenho medo de não voltar ou de o levar para casa. Porque me pedem horas e mais horas. Porque decisões difíceis têm de ser tomadas. Porque não deixei de ser pessoa antes de ser médica.
Sou nefrologista. Não comecei na linha da frente (o rim não é o principal alvo do Mostrengo). Mas em tempo de Guerra não se limpam armas! Aprendi à pressa noções que passam longe da minha área.
Sou mãe. Foi-me pedido que deixasse o meu filho sabe-se lá onde para poder cuidar dos outros. Haverá coisa mais difícil de se pedir a uma mãe.
Sou pessoa. Quando acabam os meus turnos também venho para casa confinar-me. Se era isso que me apetecia?! Tenho dias em que estou tão cansada que só me apetece hibernar em casa. Mas também tenho dias em que me apetecia - como a qualquer outra pessoa a quem foi pedido que ficasse em casa - sair, conhecer sítios novos ou rever sítios velhos. Ou, simplesmente, olhar para o mar que me inspira e me acalma. Apetecia-me tirar as férias que no ano passado não me foi permitido tirar. Apetecia-me conhecer novas pessoas, porque se não fossem as pessoas a minha maior paixão, porque teria escolhido Medicina?
Não, não vou escrever sobre o que vejo todos os dias. Não, não vou escrever sobre decisões difíceis.
Não, não vou escrever sobre aquilo que vou guardar para mim para vos poupar ao sofrimento que eu própria não queria ter sentido.
Não vou escrever sobre a importância de cumprir as medidas preconizadas. Não vou apelar à responsabilidade individual, à empatia, ao altruísmo.
Não vou escrever sobre a dor da perda de alguém de quem não nos podemos despedir.
Não vou escrever nada disto porque tudo já foi escrito.
Mas, ao pensar na pandemia, lembro-me dos Descobrimentos. E não sei onde ficaram estes heróis, se em nós corre nas veias o mesmo sangue...
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
in Mensagem de Fernando Pessoa
Ana Farinha - Médica, Nefrologista, Mãe, Pessoa
Imagem de Concierge.2C - Obra do próprio, CC BY-SA 3.0