Pelo Rim

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Amor de filha

 

Quando um diagnóstico fulminante deixa uma família de rastos

 

Passados 4 anos, ainda consigo sentir um nó no estômago e o coração acelerado cada vez que me relembro daquele dia. Um dia que teve tanto de angustiante como de revoltante, a angústia do incerto e a revolta da tua teimosia.

Agi no último momento, porque já não aguentava mais ver-te assim. Aconteceu tudo tão rápido e poderia ter sido tudo tão diferente. A 11 de agosto de 2010 foste internado e estiveste uma semana em perigo de vida. Chamo-me Andreia, o meu pai é doente renal crónico e partilho aquela que é a minha visão da doença. Ainda me questiono “Porquê?”, “Como é que aconteceu?”, mas sinceramente acho que não encontrei as respostas certas, se é que as mesmas existem.

O meu pai nunca gostou de médicos e hospitais, evitava as análises de rotina, teve uma vida algo ‘boémia’, sem grandes cuidados ou restrições. Posso afirmar que, no meio de todas as suas irresponsabilidades, foi um homem cheio de sorte, porque nunca teve problemas de saúde até ao dia em que a doença renal crónica lhe bateu à porta. Os sinais que me deram o alerta foram o aumento significativo de peso, o inchaço nas pernas e a dificuldade em respirar. Ao mesmo tempo, perguntava-lhe como é que ele se sentia ao que me respondia que estava tudo bem, tal era o receio de ter de ir ao médico e perceber que, afinal, não estava assim tão bem. Os sinais foram ficando mais evidentes ao ponto de deixar de urinar e não conseguir sequer endireitar-se. Contra a vontade do meu pai, chamei a ambulância e só mesmo nessa altura é que caiu na realidade e me disse que “talvez fosse o melhor”.

Nunca tinha experimentado este sentimento de impotência em relação ao meu pai como naquele momento. Partiu-me o coração ver o meu pai a entrar na ambulância, estava com medo de começar a choramingar e não ter forças para o ‘animar’. Pela primeira vez, vi o meu pai em pânico, assustado, parecia mais envelhecido e ali estava um homem com 55 anos à espera que as dores passassem e com esperança que tudo não fosse mais do que um pesadelo que iria em breve terminar, mas tal não aconteceu. O pior estava, ainda, para vir.

O diagnóstico chegou de uma forma rápida e violenta. Os valores das análises estavam todos alterados e os rins não estavam a funcionar. A médica repetia nomes como potássio, creatinina, ferritina ... a informação dada foi muita e de forma tão rápida que não conseguia assimilar tudo. De uma forma muito percetível, foi-me dito que deveria ter levado o meu pai mais cedo para o hospital e que, portanto, a culpa era minha. As próximas vinte e quatro horas seriam fulcrais. Senti um nó no estômago, mais parecia que me tinham dado uma valente tareia e senti vontade de vomitar de tão apertada que tinha a minha garganta.

Lembro-me de não responder nada, somente virei costas e pensei que teria de ganhar força para ir procurar o meu pai e agir como se nada fosse. O meu pai estava no SO com imensos profissionais em seu redor. Pareceu-me calmo e incentivado, mas com um medo como nunca tinha visto.

Quando cheguei a casa, tive de enfrentar outra realidade. O meu pai estava internado e tinha de contar à minha mãe o diagnóstico, mas decidi que era melhor não contar nada naquele dia. Guardei para mim o que sabia e tentei amenizar a situação com ela. Sempre vivemos muito para os três, com partilhas de tudo o que diga respeito a cada um de nós, mas naquele momento não consegui partilhar a verdade. Tentei proteger a mãe e a esposa que se sentia um pouco culpada por não ter conseguido levar o marido ao médico atempadamente.

Passados dois dias informaram-me que o meu pai ia começar a fazer diálise. Não sabia exatamente o que era, mas sabia que poderia ser para toda a vida. Quando cheguei junto do meu pai, ainda internado, já tinha um cateter no pescoço que parecia extremamente incomodativo. Nesse dia não quis falar com nenhum médico, cheguei a casa, agarrei-me à internet para ler e ver imagens de tudo o que estivesse relacionado com cateteres e diálise e fiquei muito assustada. Era todo um novo mundo que desconhecia.

Os valores das análises melhoraram ligeiramente ao fim duma semana, mas os rins continuavam muito preguiçosos. Nesta altura, já tinha começado a fazer diálise duas vezes por semana, em meio hospitalar, para analisar como reagia o corpo e averiguar se existiam melhorias mais significativas. Ao fim de onze dias de internamento, o meu pai teve uma infeção na boca e ainda não conseguia andar.

No meio desta montanha russa, o diagnóstico estava definido: doença renal crónica. O meu pai só percebeu o que era esta doença quando a enfermeira lhe explicou tudo. Foi a primeira vez que o vi a chorar depois de doze dias de sofrimento intenso.

A revolta não tardou em aparecer e as culpadas eram sempre as mesmas: eu e a minha mãe. Foi um dia em que não aguentei mais e discutimos em pleno quarto do hospital, porque era um massacre constante e percebi que tudo aquilo era injusto. Ele não era culpado, mas nós também não.

Aguentámos todas as dores, os palavrões, o mau feitio, a rabugice e tantas outras coisas, porque “não éramos nós que ali estávamos”, como ele mesmo fazia questão de dizer. Eu até percebia a angústia do meu pai, mas eu era só uma e tinha de apoiar tanto o meu pai como a minha mãe. Todos os dias íamos para o hospital, saíamos de casa por volta das 8h30 e só voltávamos à noite. Dávamos ânimo, esperança e coragem ao meu pai, mas e a mim e à minha mãe, quem é que nos apoiava?

Esta fase foi muito difícil para a minha mãe, porque tinha de lidar com a agressividade do marido e assimilar tantas ‘novidades’, receando não ser capaz de conseguir lidar com tudo. Houve muitas noites em que a ouvi chorar, mas não podia ir até lá para a confortar, porque também eu chorava. Precisava de libertar os maus pensamentos na almofada para ter forças para enfrentar o dia seguinte e pensava no regresso a casa do meu pai.

Ao fim de vinte e dois dias de internamento, o meu pai estava a fazer fisioterapia para recuperar o andar, a creatinina tinha diminuído um pouco e já não tinha anemia. As sessões de diálise decorriam sem incidentes, mas o cateter era uma fonte de infeção. A 23 de setembro, o meu pai foi construir o acesso no braço esquerdo. Deram-nos folhetos informativos e as enfermeiras foram bastante elucidativas nas explicações: como seria feito todo o processo e os cuidados a ter. Continuou com o cateter no pescoço até a fístula estar em condições. Teve alta a 9 de outubro e no dia 10 começou a fazer diálise três vezes por semana no turno da manhã. Foi o acordar para a realidade. Tomámos consciência que nada seria como dantes.

Durante muitos meses, acordávamos às 5h para o ajudarmos a arranjar-se e para o acompanhar até entrar na ambulância que o levaria aos tratamentos. Só o tornava a ver à hora de almoço quando regressava a casa. Vi lágrimas de revolta, de dor, de interrogação e de humilhação. Apercebi-me do drama de um pai que se sente diminuído, mas também de um homem que se sente aprisionado na sua própria vida. Dei conta de uma mãe, mas também uma esposa, ferida, descrente e com receio de se aproximar do próprio marido.

Chorámos muito e discutimos muito para que o meu pai conseguisse ganhar novamente alento e gosto pela vida, pois só se tem uma. Tivemos que aprender a dar-lhe tempo e espaço e, felizmente, ele próprio entendeu o que lhe estava a acontecer e percebeu que se fosse há 30 anos atrás, não haveria tratamento possível. Ganhou interesse pela própria doença e aprendeu a questionar os profissionais de saúde que o acompanham no centro de diálise.

Através da partilha, o meu pai ganhou uma nova vida. Na partilha de dúvidas, de experiências com os outros, de receios e de anseios adquiriu força para se levantar e fazer o tratamento. Às vezes diz que não quer ir mais, que chora, que não se quer levantar, mas, se lhe dermos tempo, ele percebe que é ‘um mal necessário’ para o bem dele.

Sei que não existe cura e temos consciência que, com o passar dos anos, a situação vai-se deteriorando: as cãibras pioram, a memória vai ficando menos atenta, o cansaço mais evidente, os caroços no braço da fístula aumentam e escurecem, a pele vai ficando mais enrugada e os olhos vão perdendo o seu brilho, mas força para viver tem de continuar a existir, pois não há outra solução. Aquelas 4 horas intensas de diálise passaram a fazer parte da vida dele e da nossa família e juntos temos aprendido a viver com a doença.

Aprendemos juntos que, por um lado, a doença afasta as pessoas com todas as desvantagens que isso traz, mas, por outro lado, aproxima outras com tudo o que de bom precisamos e queremos acreditar. Ficamos mais fortes na hora dos apertos e erramos totalmente quando pensamos não ser mais capazes, pois encontramos sempre o caminho que nos leva à vitória desta luta.

Nada disto tem sido fácil para mim e para a minha mãe. Para o meu pai, a doença renal crónica tem implicado percorrer um longo caminho, cheio de regras, o que não é nada fácil para quem era um desregrado. Acredito que ele é um vencedor e não um derrotado.

Há 4 anos que o meu pai está na lista para transplante. Se temos esperança? Claro que sim, mas também temos a noção de que, infelizmente, o processo pode ser demorado. Temos de viver um dia de cada vez, pois se o dia de amanhã for igual ao de hoje já é bom, mas se chegar a ser melhor, cá estaremos para celebrar e aproveitar.

Andreia e o Pai

 

 

Imagens: Fotografias da Andreia Pinheiro e dos seus pais gentilmente cedidas pelos próprios